terça-feira, 28 de outubro de 2008

A Casa do Alentejo, sempre anti-fascista!

Dedico este relato de Mário Dionísio aos frequentadores da Casa do Alentejo:

«Enchia-se-nos a casa de amigos. Velhos e novos amigos. Com muita parra à mistura, é bem verdade. Não há uvas sem parras. Juntos projectámos e organizámos, na mesma sala onde lavro este documento para a posteridade (que não há), muita coisa que esforçadamente ergueu o punho contra a barbárie fascista. Se esta sala falasse, nunca mais se calava.
As conferências, por exemplo, do Grémio Alentejano, que assim se chamava, em 43, a Casa do Alentejo, foram aqui planeadas. Uma série de palestras ilustradas com recitais de poesia e música (de música, estou dizendo), destinadas a um vasto público e aqui pensadas por amigos vários, entre os quais me ocorrem de momento a Francine Benoit, o Sidónio Muralha, o Alexandre Cabral, de cabelos à cão-d'água, risca ao meio, camisa azul-da-prússia e gravata amarela, jogava râguebi, bem bom. Como era então difícil conseguir uma sala! E alugar um piano?
A primeira conferência, do Bento de Jesus Caraça - "Algumas reflexões sobre Arte" -, sala cheia, decorreu sem problemas de maior. Mas, na segunda (e última), já os mastins tinham acordado, tudo mudou de figura. Sala ainda mais cheia. Falava o Lopes Graça sobre música medieval e punha um novo disco para documentar o que dizia, quando, no silêncio momentâneo, se ouviu, lá das últimas filas, uma voz avinhada, toda escorropichante: "Vira o disco e toca o mesmo!"
Era o sinal. Os mercenários atiraram-se ao público como feras esfaimadas. Cães à solta. Confusão. As coisas não foram, no entanto, assim tão fáceis para eles. Nós tínhamos, a toda a volta da sala, um cordão de operários da Carris, trazidos pelo Cabral, me parece, que trabalhava na empresa. De livre vontade ali estavam para o que desse e viesse. E o que veio foi uma sessão de brutal pancadaria. Brutal, não exagero. Os mastins excitavam-se a si mesmos, trepando a cadeiras para berrar: "Quem é que disse morra a Pátria?" E, dessas mesmas cadeiras se servindo como camartelos, berravam: "Viva a Pátria! Viva Salazar!" Os corpos engalfinhavam-se nas salas, rebolavam pelas escadas do Grémio Alentejano abaixo até à rua e, na rua, até à esquadra do Rossio. Apesar da indignação que tudo isto provocava, ainda nos mais calmos, Caraça maravilhava-se: como era possível haver ainda gente pronta a bater-se, e de tal modo, em defesa da cultura!»

Mário Dionísio, Autobiografia, edições O Jornal, 1987, pp. 39 e 40.

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