segunda-feira, 30 de abril de 2007

Se o fascismo é uma minhoca, Letras não é uma maçã

Cá está um artigo interessante sobre o que se tem passado na nossa Faculdade. Foi retirado da Toupeira (nº 7, de Abril - custa 1€), o jornal do Movimento Anti-Tradição Académica.

"Se o fascismo é uma minhoca, Letras não é uma maçã"


Já há um par de anos que a presença de neo-fascistas na Faculdade de Letras se começou a fazer notar. Autocolantes e panfletos do PNR e da Causa Identitária apareciam nas casas-de-banho dos alunos, nas dos meninos e nas das meninas. Quer numas quer noutras, foram sendo tão prontamente arrancados e riscados por várias mãos, várias canetas, várias letras, que era difícil chegar-se a um sítio desses e não se estar logo na presença de deliciosas obras dadaístas que já não pediam mais nenhum retoque. Também se sabia que havia skinheads a estudar na faculdade vindos directamente da prisão. Depois começaram a circular boatos de pequenas ameaças feitas a pessoas, bocas menos simpáticas atiradas a raparigas, a africanos, a militantes de partidos de esquerda. Soube-se que os tais neo-fascistas frequentavam sobretudo o Bar Novo, um bar antigamente frequentado, entre outros, por pessoas que fumavam charros e que deixaram de lá ir quando passou a haver polícia nos corredores todos os dias, a pedido do Conselho Directivo, para controlar esse suposto grande e perigosíssimo monstro que era a Droga-Em-Letras.


Mas um dia, os meninos nazis saíram da casa-de-banho e atacaram as paredes da faculdade na calada da noite... «Portugal aos portugueses», cartazes do PNR, «comunismo nunca mais», o símbolo do PNR, «a chama vive» e cruzes celtas danificaram os murais que havia à porta do Bar Novo e à porta do Pavilhão Novo – um mural antigo do MATA, outro mais recente da Juventude Comunista Portuguesa (JCP). Passados dois dias a resposta apareceu: as insígnias fascistas foram apagadas e riscadas, e novas frases foram escritas: «contra a ignorância, combate o racismo», «se o fascismo é uma minhoca, letras não é uma maçã». Dois dias depois, nova resposta: desde o previsível «o comunismo mata» ao risível «Che é merda». Neste novo ataque às paredes, os militantes nacionalistas elegeram claramente os seus inimigos: "os comunistas".


Passados uns dias, foi a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses quem respondeu: distribuíram um panfleto anunciando a pintura de um mural antifascista na Faculdade de Letras na tarde do dia seguinte. Militantes do PNR e neo-nazis de todos os tipos, umas quantas dezenas, alguns deles estudantes da faculdade, saíram então das casas-de-banho e da calada da noite. Apareceram à luz do dia nessa tarde, dia 15 de Março, formando um rebanho escuro junto aos pintores do mural. Muitos polícias: pediram primeiro umas identificações a quem fez a saudação nazi; observaram depois uns e outros enquanto se pintava o mural; pediram nova identificação a um skinhead depois de este já ter tirado todas as fotografias dos "antifas" que queria ("para publicar no nosso fórum"); dirigiram-se a dada altura aos pintores fazendo notar que afinal não podiam pintar porque o Conselho Directivo da faculdade não tinha dado autorização. Cessou a pintura do mural, os cinquenta militantes de extrema-direita ficaram a beber cervejas e a conviver no Bar Novo. (E foram ao local logo nessa mesma noite riscar tudo aquilo que os pintores "antifas" tinham começado a pintar.)


O dia seguinte era o da entrega das listas de candidatos para a Associação de Estudantes. Já antes corria o boato de que eles se iam candidatar. E foi o que aconteceu. Na Faculdade de Letras, um grupo de fascistas quis ganhar a direcção de um órgão “de representação democrática”. A lista X, curiosamente homónima da antiga lista de esquerda que chegou uns anos antes a estar na AE, colou os seus cartazes pela faculdade, dizendo apenas «vota x, basta um x». Ao lado, os cartazes da lista U, composta na sua maioria por militantes da JCP. Os nacionalistas devem ter julgado que estavam mesmo no mundo que eles imaginam que é o mundo em que vivemos: um mundo em que só há fascistas e comunistas, em que só há amantes de Salazar e amantes de Cunhal – os melhores portugueses de sempre. A campanha durou uma semana. Enquanto que a lista U colou cartazes com as suas propostas, escreveu um programa e marcou presença, todos os dias, na mesa que lhe era destinada no átrio da faculdade, a lista X manteve-se numa de casa-de-banho e calada da noite, e nunca esteve na sua mesa nem revelou os nomes dos seus elementos. O papelito A6 que lá decidiram colar mais tarde afirmava orgulhosamente que eram uma lista "apolítica".


Foi no segundo dia de campanha, mas sem referências a ela, que apareceu colado pelas paredes da faculdade o "Manifesto por uma escola livre e sem racismo", um texto feito por um grupo de estudantes e de professores que se indignaram com o sucedido no passado 15 de Março. Esse manifesto, que lembrava a vivência de luta pela liberdade característica até então da Faculdade de Letras e que afirmava o repúdio por todos os ideais e actos xenófobos, racistas e fascistas, foi empenhadamente arrancado das paredes por mãos invisíveis e militantemente re-colado pelos seus redactores, ao longo do dia. No dia seguinte, uma resposta novamente hilariante: um "Manifesto anticomunista", que, por se referir à campanha eleitoral e pelo modo como o fazia, revelou duas coisas: que a lista X era de facto composta por anticomunistas por uma escola não livre e com racismo; e que julgaram automaticamente que quem redigira o manifesto tinha sido a lista U. Uma coisa é certa para estas lisas cabeças: quem não é fascista é comunista. (Felizmente, estão muito enganados!)


O problema de haver gente de extrema-direita organizada em Letras começou então a ser falado entre estudantes, professores e funcionários, nos corredores, nas salas, nos bares. O debate entre listas, na quinta-feira da semana de campanha, estava à pinha. Confrontados com inúmeras questões, vindas de diversas vozes, de estudantes de todos os anos e cursos, sobre a concentração neo-nazi de dia 15 de Março, sobre as suas ideias relativamente à miscigenação, ao racismo, à xenofobia, à liberdade, à existência de diversas culturas, à democracia, os elementos da lista X defenderam-se mal. O objectivo que tinham de se camuflarem, de se fazerem passar por pessoas "normais", não foi de todo atingido. "O melhor amigo que eu tenho na minha turma é um negro, é uma pessoa de cor" - afirmação que chegou a ter de proferir o elemento da lista escolhido para estar na mesa, "alegadamente" (como nos jornais se usa) julgado e condenado pelo assassinato do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, em 10 de Junho de 1995 – foi a pérola. Na segunda-feira, primeiro dos dois dias de votação, a história já aparecia na comunicação social. Seguiu-se uma atitude de vitimização da lista X, negando toda e qualquer ligação ao PNR e à extrema-direita, embora a presidente da juventude do PNR, Rita Vaz, dissesse ao mesmo tempo que o seu partido estava a tentar ganhar a AE da Faculdade de Letras. Na madrugada de quarta-feira ficava a saber-se o resultado: 19 nulos, 24 brancos, 81 votos na lista X e 818 votos na U.


Todos estes acontecimentos até à estrondosa derrota da lista X fazem-me pensar que o fascismo existe e anda com pezinhos de lã, mas quando quer demais e é obrigado a mostrar-se, de botas cardadas, há ainda uma forte resposta de quem gosta de viver um bocadinho mais livre do que numa ditadura, e em sítios onde reine um bocadinho menos de discriminação do que aquela que já há na nossa sociedade... Será que essa resposta se dá apenas nesses momentos em que tudo vem ao de cima, em que tudo aparece escancarado, em que o perigo já está mesmo mesmo a bater à porta? Os neo-nazis, na Faculdade de Letras e fora dela, continuam a ser muito poucos, um grupelho. Em Letras só se fizeram sentir e notar porque há uns bons dois ou três anos que o movimento estudantil é fraco, que as actividades culturais e políticas são inexistentes, que não há vida nos corredores para além de pessoas cada uma por si, ou de grupos de colegas que nada fazem em conjunto, para além de ir às aulas (e talvez combinem um jantar, fora da monotonia daquele edifício). É a vida nas faculdades que se tem de mudar, é a actividade das pessoas que nela vivem, é o ambiente que se respira naquele espaço.


Na quinta-feira após o resultado das eleições, o grupo de estudantes e professores que fez o "Manifesto por uma escola livre e sem racismo" organizou uma conversa na esplanada, intitulada "Viva quem muda sem ter medo do escuro", com Eduarda Dionísio (escritora e professora), José Mário Branco (músico), Tiago Gillot (pelo SOS Racismo) e Rui Faustino (do Museu República e Resistência). Falou-se de liberdade, de lutas, de fascismo, de racismo, da escola, do mundo, das vidas das pessoas, de poderes, de quereres, de pensares. Mais de 100 pessoas assistiram e várias intervieram depois da mesa falar. A vontade de lutar das pessoas, a vontade de querer viver a mudar sem ter medo do escuro, afinal existe. Pessoas que não se conheciam ficaram a saber que existem outras que também querem fazer coisas. O grupo Manifesto já prometeu continuar a sua actividade para abanar a faculdade. Acho que é por aí. E espero que mais gente comece a fazer coisas. Não apenas pela ameaça do crescimento da extrema-direita, porque esses NÃO PASSARÃO, mas sim pela transformação da nossa vida na faculdade e fora dela.


D.D.

Viva quem muda sem ter medo do escuro

Já vem atrasado, mas aqui estão algumas das fotografias da conversa na esplanada. Houve muita gente que passou por lá, estudantes da casa, de outras casas, professores e outras pessoas.

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O momento musical com Pedro e Diana, onde tocaram para além de dois temas originais, o Rei vai nu do Sérgio Godinho.

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A mesa dos oradores, composta por Eduarda Dionísio, José Mário Branco, Rui Faustino (pela Biblioteca-Museu República e Resistência) e Tiago Gillot (pelo SOS Racismo).

O ]movE[ esteve lá e escreveu um artigo sobre o debate. O Esquerda.net fez umas gravações áudio.

quarta-feira, 25 de abril de 2007